Autor: Armando Martins

Entre Veser e Elba

(o noroeste alemão: de Brema a Hamburgo)

O noroeste alemão, já a umas dezenas de quilómetros do mar, não muito mais longe da fronteira holandesa, e a um pouco mais da fronteira dinamarquesa, é sulcado por dois rios, o Elba, de que suponho terem alguns leitores ouvido falar, e o Veser, decerto desconhecido da grande maioria dos falantes de português, como da ingente massa de seres humanos que connosco partilham este vale de lágrimas.
São estas as principais correntes de água do noroeste alemão, e nas suas margens se edificaram duas cidades de certa dimensão, uma no Elba, Hamburgo, grande cidade portuária, de que muitos têm conhecimento, mesmo se vago, e outra no Veser, Bremen (ou Brema, como se dizia em português), de que quase ninguém ouviu o nome.
Em Brema vivo há duas décadas, e a Hamburgo dou passeios frequentes, apanhando o comboio ao fim de semana e percorrendo os 120 quilómetros que separam os dois burgos comerciais, cidades hanseáticas do tempo da velha hansa, que reunia o poder do negócio no Mar do Norte, no Báltico e alhures.
E assim eu, que venho do sul, vivo a norte. Mais exatamente, venho do sul europeu, e vivo na Europa Central, na parte norte dela, se me consentem o recurso a um jeito de dizer um tanto ininteligível ou pelo menos deselegante.
Nasci no Sul da Europa, no Algarve, e vivo no Norte da Alemanha. Em comum poderia registar-se a circunstância de tanto num país como no outro viver a ocidente. Nasci no sudoeste português e habito a cidade hanseática de Brema, no noroeste alemão.

Tanto uma cidade como a outra, tanto um rio como o outro, têm motivos de interesse e beleza. A diferença é a dimensão, tendo Brema pouco mais de meio milhão de habitantes e Hamburgo o triplo, e a «visibilidade», poderia dizer-se seguindo a moda, tanto dos centros urbanos como dos rios que os banham.
A foz do Elba e a foz do Veser distam entre si poucas dezenas de quilómetros, à semelhança do que sucede em Portugal com Tejo e Sado. As duas grandes cidades de que falo não foram construídas na foz do rio, ao contrário de Setúbal, na foz do Sado, ou de Lisboa, na derradeira caminhada do Tejo para seu encontro atlântico. Situam-se tanto uma como outra a mais de meia centena de quilómetros da foz, e em Hamburgo é espetáculo digno de ver a entrada e a saída de grandes navios, monstros oceânicos, que exigem repetidamente a dragagem e o afundamento do Elba, até que um dia, já próximo, isso deixe de ser possível.
Hamburgo terá um dia próximo de ceder face à crescente dimensão dos navios gigantescos que transportam mercadorias ou passageiros pelo mar oceano, até porque a dragagem do Elba, para manter um esteira central navegável, não pode continuar indefinidamente e provoca, aliás, desequilíbrios ecológicos e dá origem a conflitos legais.
Brema desistiu há muito de procurar manter o seu porto fluvial a uma escala planetária, o que seria de resto impossível (o Veser não é o Elba). A administração local, a sua rica e previdente burguesia, comprou ao então reino de Hanôver, nos finais do século XIX, Bremerhaven, na foz do Veser, a uns setenta quilómetros de Brema.
Em Bremerhaven foi edificada uma cidade e construído um porto. Eram mais prudentes os políticos de Brema nesse tempo. Os de hoje apenas se destacam pela incompetência. Bremerhaven ficou a ser um enclave que constitui com a cidade de Brema, maior e mais importante, o estado federado de Bremen, ou de Brema, um estado constituído por duas cidades, o mais pequeno da Alemanha e o menos populoso.
Eu vivo numa cidade, Brema, e dou saltadas a outra, Hamburgo. De uma e outra falei já em livros meus e hei de continuar a falar. De uma e outra apresentei fotografias no portal Olhares, a que pertenço há algum tempo. Podem ver-se em «Olhares – fotos recentes de Armando Martins» ( http://olhares.sapo.pt/Armando_Martins/ ).
Aqui queria alinhavar apenas umas notas breves, apressadas, sobre a paisagem e mesmo as gentes, acompanhadas de duas fotografias, de Hamburgo uma, e outra do Elba, tirada esta a umas dezenas de quilómetros de Hamburgo e a outras tantas da foz. O Elba, para quem não sabe, desagua a alturas da cidade, portuária também, de Cuxhaven. De Brema e do Veser encontram-se algumas fotografias já nesta minha página, na biografia, pelo que se dispensam agora.

Armando Martins Escritor Sagres - Hamburgo Elba - Canais
AM – Hamburgo, um dos muitos canais da cidade

Armando Martins Escritor Sagres - Hamburgo Elba - Barco
AM – O Elba, entre Hamburgo e a foz

O norte alemão é plano, tendo quando muito leves ondulações do terreno, que ficaram, ao que parece, da última era glaciar. Brema, velho burgo comercial, decadente e endividado, invejoso do brilho de Hamburgo, que lhe fica a norte, é mesmo a cidade mais plana que em vida minha me foi dado ver.
Falo de paisagem plana, portanto, onde dantes se sucediam os pauis, que o labor humano entretanto drenou e consagrou à agricultura, atividade fértil mas fatigante, tendo sido, ultimamente, algumas, poucas, de tais antigas manchas pantanosas devolvidas mais ou menos à sua expressão primitiva, «renaturadas», como sói dizer-se, numa decisão sem consequências senão as da boa consciência dita politicamente correta.
O íncola (entrei no tipo humano) é grande, direto, pouco exuberante no falar. Ao fim de algum tempo de convívio é possível uma aproximação maior do que os primeiros contactos fariam supor. Em Brema, cidade original a vários títulos, o gentio por vezes peca por estar tão enervado que não se pode aturar. É exasperante. Tirando essa e outras particularidades que me dispenso de relatar, difíceis de crer quando se não tem conhecimento em primeira mão, a cidade onde vivo não é assim tão desagradável.
Hamburgo é mais civilizada, felizmente, e uma horas lá ressarcem de uma demorada permanência aqui. Distração autêntica, mudança de ares e verdadeira reconstituição do arcaboiço e do moral, ou seja restauração de corpo e alma, as duas componentes de que somos constituídos, bichos duais que somos, só são possíveis em férias portuguesas, já se vê.
Se alguém, alguma vez, quiser visitar estas paragens, aconselho o fim da primavera ou o princípio do verão, esses dias amplos, benignos, de maio ou junho, em que, se a meteorologia se não conjura contra nós, desabando água como no dilúvio, se podem fazer, com amenidade, uns quilómetros de bicicleta, parar nas margens do Veser ou do Elba, ou num dos outros rios, ribeiros ou canais que cortam o noroeste alemão, e beber uma caneca de cerveja num qualquer café do caminho, à sombra de uma árvore.
Maio ou junho, digo eu, aqui no noroeste alemão. É o que aconselho ao leitor cobiçoso de uma vilegiatura germânica fora dos percursos turísticos consagrados.

Brema, 2 abril 17

A Finlândia no solstício de verão

Não faço grandes viagens, nunca as fiz, ou quase nunca. E não era viagem realmente grande deslocar-me a São Petersburgo, vivendo eu no Norte da Alemanha. Não seria talvez barata a vilegiatura, mas muito longe não fica a antiga capital do império russo.
E por que razão haveria eu de ir a essa bela cidade, a única da Rússia imensa onde alguma vez estive? Estive, certa vez que fiz um cruzeiro pelo Báltico, na bela metrópole europeia, mandada construir de raiz por Pedro o Grande, czar da Rússia. Pedro o Grande, dizemos nós em português, que tradução mais próxima do cognome russo seria porventura «Pedro o Gigante», que gigantesco era o czar, passando os dois metros de altura, coisa pouco comum hoje e insólita há três séculos.
Pois bem, porque haveria de querer ir a São Petersburgo, que durante décadas se chamou Leninegrado, que chegou a apelidar-se Petrogrado, para depois voltar ao nome derivado do colosso que a mandou construir? Queria ir até aí porque sou amante da literatura russa, de Dostoievski e Gogol, entre outros, que à cidade dedicaram páginas imorredouras.
E há poucochinho, estando no solstício do verão, altura das noites brancas de Petersburgo, que Dostoievski imortalizou, poderia passear pela Nevski Prospekt (prefiro Nevski à grafia mais comum com y), a Avenida Nevski, tema de um belíssimo conto de Gogol. É que eu não conhecia as noites brancas, e queria conhecê-las.
Pois bem… fui a Tampere, num voo direto de Brema, onde vivo, para a cidade finlandesa. Por módica quantia apanhei um voo da Ryanair, companhia que muito tem incentivado o turismo com os seus destinos em conta. A cidade onde vivo teria menos turistas, e o Porto e mesmo Lisboa, não fosse a Ryanair, a que não pretendo fazer publicidade, mas apenas referir de passagem o facto insofismável.
Tampere, antiga cidade industrial, no sul da Finlândia, dista menos de 200 quilómetros de Helsínquia, a capital, aonde me desloquei um dia, de comboio, e menos ainda de Turku, a antiga capital finlandesa, aonde fui igualmente, também por via férrea. Qualquer destas três cidades fica a norte de São Petersburgo, embora não muito mais a norte, e têm as três noites brancas garantidas. As viagens ferroviárias são agradáveis (e pelo que sei as rodoviárias), com comboios modernos, limpos, pontuais, a preços razoáveis, o que há muito deixou de se encontrar na Alemanha.
A única pergunta a que faltará ainda responder, para quem me conheça, é a razão de, deitando-me eu cedíssimo, querer por força ver noites brancas. A pergunta só me ocorreu já por terras da Finlândia, e a resposta será, como salientei, o fascínio pelos mestres russos do século XIX.
Parti para Tampere no dia 24 de junho, uma sexta-feira, véspera de Juhannus, que assim chamam os finlandeses à grande festa do solstício de verão, celebrado por toda a Escandinávia (ou nos países nórdicos, para quem não queira incluir a Finlândia na Escandinávia) com fervor e álcool a rodos. Regressei à pacata e provinciana Brema, onde vivo (prefiro dizer Brema, como se dizia dantes na língua de Camões, em vez de Bremen), na sexta seguinte, o primeiro de julho.

Tampere

Armando Martins Escritor Sagres - Tampere, um dos níveis da queda de água
AM – Tampere: um dos níveis da queda de água

Chamaram a Tampere a Manchester finlandesa, mas será exagero. Verdade é que restam as fábricas e as chaminés, do mais belo que a cidade tem, preservadas com gosto e inteligência. Para um país europeu, extenso em área, mas com metade da população de Portugal, Tampere, cidade universitária com mais de duzentos mil habitantes, é grande. Recorde-se que a capital, Helsínquia, pouco passa do meio milhão.
Num país de lagos, Tampere tem dois, com um desnível de dezoito metros, e quedas de águas entre eles, que alimentaram outrora a indústria e geram energia elétrica na atualidade, e sobretudo atraem, prendem alguém como eu.
A cidade está situada quase toda ela abaixo do lago superior, de onde desce a cascata canalizada, em patamares sucessivos, para o lago mais baixo. Eu passei a maior parte do tempo junto às quedas de água, admirando, preso ao sortilégio, e a interrogar-me sobre a possibilidade, que aparentemente não ocorre aos habitantes, de um dia todo aquele maquinismo admirável deixar de funcionar devidamente.
A cidade tem outros motivos de interesse, alguns belos edifícios, boas livrarias, onde se encontram livros em línguas estrangeiras, e não só em inglês, coisa menos comum na Alemanha. E tem dois belos lagos, que as fascinantes cascatas unem, descendo a cidade.

Os habitantes de Tampere são reservados, como o são em regra os finlandeses, mas muito prestáveis, quando nos dirigimos a eles, como o são os finlandeses, e talvez a gente mais civilizada que alguma vez tenha encontrado. Devo apenas fazer a ressalva de que, deitando-me cedo, não presenciei muitas das bebedeiras de sexta e sábado, dias em que caíram este ano as festividades solsticiais.
Em todo o caso, eu não pertenço a nenhuma liga antialcoólica, e logo no domingo, para compensar a abstinência anterior, bebi cerveja finlandesa, um pouco acima da minha conta. Gastei algum dinheiro porque nisso os finlandeses, como todos os nórdicos, têm preços proibitivos e regras apertadas para o álcool, que parece provocarem sobretudo efeitos indesejáveis. Só os dinamarqueses são mais liberais na venda de álcool, mas praticam na mesma preços excessivos.

Turku

Armando Martins Escritor Sagres - Turku, a torre da catedral
AM – Turku: vista da catedral

Turku foi capital durante o domínio sueco. No início do século XVIII, perdendo a Suécia as veleidades de grande potência do Báltico e abandonada a Finlândia ao império russo, Alexandre I, czar da Rússia, transferiu a capital para Helsínquia, mais próxima de São Petersburgo.
É bela Turku, cidade mais antiga, muito mais antiga que Helsínquia, tendo esta última no início de novecentos, ao que li, uns 4000 habitantes. Corre em Turku um rio, que no centro mais parece ribeiro ou canal, e se espraia depois, já na direção do porto, onde se salienta a mole imensa de um antigo forte.
No centro da cidade destaca-se a catedral, com a universidade perto. Turku tem belos edifícios, e são agradáveis as margens do rio, que convidam ao lazer.

Helsínquia

Armando Martins Escritor Sagres - Helsínquia, o mar, o centro e nele a catedral
AM – Helsínquia: vista do centro com catedral

É bela a capital da Finlândia, bela capital do Báltico, que só terá belas capitais, Estocolmo, Copenhaga, Riga, Talin, e essa outra pérola que é São Peterburgo.
No centro da principal praça da cidade encontra-se a estátua de Alexandre II, czar da Rússia, senhor da Finlândia, rei da Polónia. A Rua de Alexandre, no entanto (Aleksanterinkatu), na capital, toma o nome do seu antecessor, Alexandre I, que instituiu o principado da Finlândia. Por toda o país se encontra uma Alexanterinkatu, e eu presumo que é sobretudo o primeiro do nome que assim é homenageado.
Aos amantes de pormenores deixo a dúvida acerca dos Alexandres russos. Também deixo uma outra, em particular a amantes de filologia, que é a de saber se, como presumo, katu vem realmente do sueco gata, que suponho aparentado com o alemão gasse e mesmo o inglês gate. A mim, ao menos por ora, não me apetece confirmar ou infirmar hipóteses, o que leva tempo.

Armando Martins Escritor Sagres - Helsínquia, Alexandre II, Senhor de Todas as Rússias
AM – Helsínquia: Alexandre II, Senhor de Todas as Rússias

Que país tem na praça mais nobre da capital a estátua de um monarca estrangeiro? Alexandre II era senhor da Finlândia, que tem, como nação, um século de vida independente, não esqueçamos. A Finlândia deve muito a Alexandre II, cuja estátua é testemunho de respeito e gratidão, mas também a Alexandre I, e talvez a sobrevivência do finlandês como língua se deva ao domínio russo, pesem embora os motivos de rancor, animosidade e medo que a história do século XX terá gerado e, durante a segunda guerra mundial, a perda da maior parte da Carélia finlandesa.
Os finlandeses não têm recordações ternas de Estaline. Quem as terá? Bateram-se contra os russos com bravura, e, se o ditador lhes levou a Carélia, não levou o país inteiro, em que de resto não estaria interessado. De qualquer forma, se o houvesse tentado, o seu exército teria arcado com perdas expressivas em vidas humanas.
Helsínquia é muito bela, com o mar por toda a parte, esse Báltico de ilhas e ilhéus, de baías apertadas, um mar fechado, de pulcritude inquestionável, mas que chega a oprimir quem, como eu, nasceu frente ao Atlântico. No labirinto que o Báltico é, interroga-se o visitante como terá sido possível aos façanhudos guerreiros nórdicos de antanho navegar em condições tão adversas.


A jeito de conclusão

Um dia talvez eu escreva um pouco mais e retome este texto num outro contexto e enquadramento. Escrevi de corrida, porque me falece tempo e talvez paciência. Uma coisa é certa, e não é necessário dizer-me ninguém: «Suomi on kaunis maa.» A Finlândia é bela, ninguém duvide.
Deixando uma nota sobre a língua do país, acrescento o seguinte: o finlandês, para quem o não saiba, faz parte das poucas línguas da Europa que, como o basco ou o húngaro, não pertencem à família indoeuropeia. A dominação sueca fez retroceder o seu uso, sobretudo a nível oficial e nos meios cultos, que foi possível recuperar durante o período russo. Muito se poderia dizer sobre a língua e até acerca das diferenças entre a norma escrita e a linguagem quotidiana, mas não é este o ensejo de o fazer.
O finlandês é, pois, uma língua exclusivista, que tem no estónio e no carélio primos mais minoritários, mas as gerações jovens do país falam muitíssimo bem o inglês, e o turista, a esse respeito, não encontra dificuldade alguma.
São brancas as noites, aqui como em São Petersburgo, acima do paralelo 60 de latitude norte. Em Tampere, pelo solstício de verão, o sol está menos de cinco horas abaixo do horizonte, e o céu não chega a escurecer de verdade. Não se dorme é muito bem. Eu deveria ter feito como toda a gente e bebido mais do que bebi.
O reverso das noites brancas são os dias curtos no inverno, curtos e frios, mas era de noites brancas que falávamos, e fica o leitor a saber, se acaso o não sabia, que vale a pena visitar a Finlândia, belo país, seguro, civilizado, de gente prestável.

Brema, 4 jul. 16