A geografia, ou os lugares
Sagres
Nasci em Sagres.
Gosto de Sagres. Não é difícil gostar de Sagres. Mais difícil talvez será saber viver lá, como no meu romance, em boa parte autobiográfico, Em Sagres, deixo perceber aqui e ali.
Eu nasci em Sagres, gosto de Sagres, mas não vivo aí. Volto sempre a Sagres, o que é outra coisa, e gostaria de morrer lá, provavelmente, o que é outra coisa ainda. Não vivo em Sagres, porém, e, mesmo na minha infância e adolescência, que decorreram no Algarve, não vivi lá a maior parte do tempo, mas em outros lugares, como Salema e Ferragudo. Em Sagres passava todas as férias escolares.
É a Sagres, contudo, que sempre volto e julgo voltarei sempre, e nenhum lugar no mundo me marcou tanto. Ortega y Gasset, pensador espanhol que admiro, falou do eu e da circunstância. Pois bem: Sagres marcou a traços indeléveis a minha circunstância, de tal forma que a circunstância se adentrou no eu. A Sagres consagrei alguns poemas, como aquele antigo, intitulado, em homenagem a Ortega, «O eu e a circunstância», publicado em 2015, numa recolha da minha poesia de juventude.
Sem Sagres eu seria outro. Seria outro sem o vento norte a assobiar, obsessivo, sem a belíssima Praia da Mareta, para mim a mais bela praia do mundo, sem tanta coisa nessa terra, numa palavra, sem esse istmo, dádiva suprema, morada de deuses, que Sagres é.

AM – Praia da Mareta, Sagres

AM – As ilhas, Sagres
Mais Algarve: Salema e Ferragudo
Vivi na Salema, aldeia entre Sagres e Lagos, na infância, durante alguns anos, e tenho dessa povoação de pescadores e pequenos lavradores das recordações mais felizes da minha vida. Hoje a Salema, como todo o Algarve, mudou muito, e é difícil, para quem não saiba, identificar os poucos vestígios que restam de um Algarve pobre, perdido no tempo, mas de uma extraordinária beleza, em grande parte desaparecida nessa voragem dos anos de setenta a noventa do século XX que destruiu, por todo o país, arquitetura e paisagens.
Na Salema pescava-se e cultivava-se a terra mesmo junto ao mar, e outras atividades ou profissões seriam quase inexistentes.
Fui viver depois para Ferragudo, aldeia de características semelhantes à Salema, mas de maior dimensão e com uma atmosfera muito distinta. Ferragudo, frente a Portimão e à Praia da Rocha, fica na foz do Arade, o curso de água mais importante do Algarve.

AM – Foz do Arade
É bela a foz do Arade, e eu conheci a Praia da Rocha, com rio e mar, quando tinha palacetes e moradias e um encanto que perdura apenas na memória de quem a viu há meio século.
Também em Ferragudo havia pescadores e lavradores, e também aí, como na Salema, se cultivavam terras até à borda da falésia ou até à praia.
Em Ferragudo acabei a escola primária. A seguir frequentei durante seis anos o liceu em Portimão, tendo ido mais tarde viver para os arredores de Lisboa, onde finalizei o liceu, tendo em Lisboa cursado Economia.
Gostei e gosto de Ferragudo, mas a Salema é o meu éden pagão, e em parte alguma fui tão feliz como aí.
Sagres é, na minha geografia sentimental, o lugar de longe mais importante, mas a Salema deu-me muita alegria e felicidade.
Os arredores de Lisboa e Lisboa
Fui viver, aos dezasseis anos, para os arredores de Lisboa, hoje tão feios. E mesmo os mais belos entre eles têm um resto tão-só do antigo encanto.
Lisboa sempre me interessou muito mais que os seus arredores, e nestes mais Cascais e Sintra, e não onde eu vivia.
Em Lisboa estudei Economia, acabei o curso, ensinei, quase todo o tempo na Universidade. Inscrevi-me em vários cursos universitários de línguas e literaturas, que a breve trecho interrompi, inscrevi-me em escolas de línguas, aprendi algum alemão e italiano. Frequentei o cinema, quase até aos meus quarenta anos, sendo grande admirador do cinema italiano, com Fellini, Visconti e outros. Li jornais, segui a política.
Só nos meus três últimos anos em Portugal vivi em Lisboa, tendo a minha existência até então decorrido a sul da capital. Em Lisboa vivi no centro da cidade, num dos seus bairros antigos, e depois disso mudei-me para o Norte da Alemanha.
O país dos meus afetos vai até Lisboa, acompanhando alguns dos seus arredores, como Cascais.
O meu pai era transmontano, e eu gosto do Porto, gosto do Centro e Norte de Portugal, gosto do Minho e de Trás-os-Montes, mas do ponto de vista sentimental é a região sul, que se estende do Algarve a Lisboa, que me prende e me define as origens.
O Norte da Alemanha

AM – O Wümme em Blockland, Bremen
Vivo atualmente no Norte da Alemanha. O tempo passa depressa, e já completei duas décadas neste país.
Na minha vida percebi há muito não ser eu quem decide o essencial. Entenda-se, eu sou teimoso, sou pouco influenciável, mas o essencial é decidido por outrem, digamos os deuses, para me exprimir num estilo e tom entre o evasivo e o poético, mas dizendo o que pretendo dizer e dizendo-o com o rigor de que sou capaz.
Se me tivessem perguntado, ao fazer trinta anos, se alguma vez pensaria viver na Alemanha, teria dito que não. Pois bem: é aqui que vivo, no Norte do país, conhecendo eu, antes de viver cá, um pouco o Sul e a Renânia.
Digamos, pois, porque me falta o tempo para esclarecimentos, que aliás não esclareceriam nada, que decidem os deuses por nós (não só por mim, evidentemente!), e, quanto mais cedo entendermos isso, melhor. É claro que podemos dizer que não, o que eu fiz tanta vez na vida, mas isso não serve de nada nem nos leva longe.

AM – O Veser, centro da cidade

AM – A velha câmara (pormenor), Renascença do Veser
Eu vivo, assim, no Norte da Alemanha, numa cidade que se chama Bremen, ou Brema, como se dizia dantes em português, uma cidade que é também um estado federado, o mais pequeno do país, e fica a 120 quilómetros a sul de Hamburgo, cidade maior esta, também estado federado, também cidade hanseática como aquela onde vivo.
Por aqui corre o Veser, que desagua no Mar do Norte a setenta quilómetros de Brema, e em Hamburgo corre o Elba, rio mais importante, que também desagua no Mar do Norte.
O Mar do Norte, nesta parte da Alemanha e na Holanda, é um mar estranho, um mar de vasa, em vez de praia de areia, onde o mar está perto ou a meia dúzia de quilómetros de distância, conforme a maré. A habituação é difícil para quem conhece o Atlântico. Não muito longe, para norte e leste, começa o Báltico, mar interior, mais interior que o Mediterrâneo, mas como o Mediterrâneo muito belo.
A aprendizagem
Não posso dizer que tenha aprendido muito na vida, sobretudo ao medir a distância entre o que poderia ter feito e o que fiz. Defino-me, aliás, como semianalfabeto, e só não comecei por dizê-lo de chofre para evitar a suspeita de descomedimento na linguagem. É o que sou, porém, e estou bem acompanhado. É o que há mais neste mundo. Em contrapartida, gente culta é rara, e não parece provável que a situação melhore, dada a decadência universal do ensino.
Se falo melhor ou pior meia dúzia de línguas, em boa verdade antes pior do que melhor, noutros domínios, como as artes plásticas, a arquitetura e a música, que enuncio por ordem crescente de ignorância, os meus conhecimentos são muito escassos, eufemismo que evita dizer serem quase nulos. Na pintura, de que tenho vagas luzes, incertas e bruxuleantes, fiquei-me, por outro lado, pela pintura figurativa, o que significa que vivo ainda nos inícios do século XX, ou talvez em finais de oitocentos.
Se sou semianalfabeto a culpa é minha. Tive muitas oportunidades, e quando era novo era muito dotado para as matemáticas e as línguas, tendo uma memória excecional. Não fiz nada, e por isso sou o que sou.
Naturalmente, acontece a gente ver alguém na televisão, um político, por exemplo, que arranjou maneira de terminar um curso superior, e é com tristeza que verifica tratar-se de um analfabeto chapado, muito mais do que os desfavorecidos da fortuna que nunca foram à escola, mas quase sempre sabem mais.
Eu sou apenas semianalfabeto, o que, passe o humor negro, é quase honroso no mundo em que vivemos.
O liceu
Finalizei a escola primária em Ferragudo.
Comecei o liceu em Portimão e terminei o último ano no Barreiro. Sempre fui dos alunos mais preguiçosos, mas também dos melhores, embora muito raro o melhor da turma.
O Liceu de Portimão, vejo-o há distância de mais de quatro décadas, não era mau, e as instalações eram boas e novas.
Não aprendi mais lá e por toda a parte por ser como sou.
A Universidade
Estudei e concluí Economia. Aquilo que menos me interessa foi o que terminei, primeiro com notas altas, depois mais baixas, mas ainda assim com média de bom.
Inscrevi-me, em Lisboa, já assistente de Economia, em Estudos Clássicos e Portugueses, anos mais tarde em Linguística, tendo neste último caso frequentado o latim durante um ano, mas interrompi muito cedo os cursos, sobretudo o primeiro. Julgava-me velho de mais, imagine-se! Era de facto uns anos mais velho que os meus colegas, mas poderia acrescentar que aos catorze ou quinze anos de idade já eu me achava velho.
Na Alemanha também me inscrevi em cursos de letras, que também abandonei. Em escolas de línguas, todavia, que frequentei tanto em Portugal como na Alemanha, mantive-me mais tempo.
Estudei e trabalhei na Universidade, portanto. Trabalhando na Universidade, tive o projeto de fazer um doutoramento em Ética Económica. Pretendia fazê-lo no Reino Unido, onde tinha estabelecido um contacto.
Por razões familiares, decidi-me pela Alemanha. Só tive aborrecimentos, em Portugal e na Alemanha, ao decidir fazer o doutoramento no país para onde me viria a mudar, anos mais tarde. Tendo, ao fim de dois anos, passado os aborrecimentos, ou muito perto disso, já eu não tinha paciência para doutoramentos. Data da minha fase universitária a tese, intercalar, por assim dizer, A Sociedade Livre e o Mercado, que deveria ter publicado na altura, como alguns me aconselharam.
Vida profissional
Já disse o essencial, ou muito dele, ao falar da Universidade. Poderia resumir o que há a acrescentar, dizendo o seguinte: quase toda a minha vida profissional estive ligado ao ensino.
Em Portugal ensinei a maior parte do tempo, praticamente o tempo todo, na Universidade. Publiquei aí, com a equipa a que pertencia, cadernos para uso dos alunos, sobre Estatística Descritiva e Contabilidade Nacional, em edição da associação de estudantes. Anos mais tarde apresentei um projeto de doutoramento em Ética Económica
Na Alemanha, vivendo em Brema, ensino Português no estado vizinho, o estado federado da Baixa Saxónia (Niedersachsen), com capital em Hanôver. Ensino Português a alunos de origem portuguesa, nalguns casos brasileira ou africana, e com frequência o português é para tais alunos uma língua estrangeira já, ou apenas língua segunda. E hoje em dia faço outras coisas também no âmbito do ensino.
Em Portugal fui quase sempre funcionário público; na Alemanha também o sou, embora na categoria menos aristocrática do serviço público alemão, aonde vão parar os estrangeiros, com ou sem nacionalidade alemã adquirida. Não vale a pena esmiuçar o serviço público germânico, mas encontram-se referências a ele em alguns livros meus.
