(Português) Entre Veser e Elba

Leider ist der Eintrag nur auf Português verfügbar.

A Finlândia no solstício de verão

Não faço grandes viagens, nunca as fiz, ou quase nunca. E não era viagem realmente grande deslocar-me a São Petersburgo, vivendo eu no Norte da Alemanha. Não seria talvez barata a vilegiatura, mas muito longe não fica a antiga capital do império russo.
E por que razão haveria eu de ir a essa bela cidade, a única da Rússia imensa onde alguma vez estive? Estive, certa vez que fiz um cruzeiro pelo Báltico, na bela metrópole europeia, mandada construir de raiz por Pedro o Grande, czar da Rússia. Pedro o Grande, dizemos nós em português, que tradução mais próxima do cognome russo seria porventura «Pedro o Gigante», que gigantesco era o czar, passando os dois metros de altura, coisa pouco comum hoje e insólita há três séculos.
Pois bem, porque haveria de querer ir a São Petersburgo, que durante décadas se chamou Leninegrado, que chegou a apelidar-se Petrogrado, para depois voltar ao nome derivado do colosso que a mandou construir? Queria ir até aí porque sou amante da literatura russa, de Dostoievski e Gogol, entre outros, que à cidade dedicaram páginas imorredouras.
E há poucochinho, estando no solstício do verão, altura das noites brancas de Petersburgo, que Dostoievski imortalizou, poderia passear pela Nevski Prospekt (prefiro Nevski à grafia mais comum com y), a Avenida Nevski, tema de um belíssimo conto de Gogol. É que eu não conhecia as noites brancas, e queria conhecê-las.
Pois bem… fui a Tampere, num voo direto de Brema, onde vivo, para a cidade finlandesa. Por módica quantia apanhei um voo da Ryanair, companhia que muito tem incentivado o turismo com os seus destinos em conta. A cidade onde vivo teria menos turistas, e o Porto e mesmo Lisboa, não fosse a Ryanair, a que não pretendo fazer publicidade, mas apenas referir de passagem o facto insofismável.
Tampere, antiga cidade industrial, no sul da Finlândia, dista menos de 200 quilómetros de Helsínquia, a capital, aonde me desloquei um dia, de comboio, e menos ainda de Turku, a antiga capital finlandesa, aonde fui igualmente, também por via férrea. Qualquer destas três cidades fica a norte de São Petersburgo, embora não muito mais a norte, e têm as três noites brancas garantidas. As viagens ferroviárias são agradáveis (e pelo que sei as rodoviárias), com comboios modernos, limpos, pontuais, a preços razoáveis, o que há muito deixou de se encontrar na Alemanha.
A única pergunta a que faltará ainda responder, para quem me conheça, é a razão de, deitando-me eu cedíssimo, querer por força ver noites brancas. A pergunta só me ocorreu já por terras da Finlândia, e a resposta será, como salientei, o fascínio pelos mestres russos do século XIX.
Parti para Tampere no dia 24 de junho, uma sexta-feira, véspera de Juhannus, que assim chamam os finlandeses à grande festa do solstício de verão, celebrado por toda a Escandinávia (ou nos países nórdicos, para quem não queira incluir a Finlândia na Escandinávia) com fervor e álcool a rodos. Regressei à pacata e provinciana Brema, onde vivo (prefiro dizer Brema, como se dizia dantes na língua de Camões, em vez de Bremen), na sexta seguinte, o primeiro de julho.

Tampere

Armando Martins Escritor Sagres - Tampere, um dos níveis da queda de água
AM – Tampere: um dos níveis da queda de água

Chamaram a Tampere a Manchester finlandesa, mas será exagero. Verdade é que restam as fábricas e as chaminés, do mais belo que a cidade tem, preservadas com gosto e inteligência. Para um país europeu, extenso em área, mas com metade da população de Portugal, Tampere, cidade universitária com mais de duzentos mil habitantes, é grande. Recorde-se que a capital, Helsínquia, pouco passa do meio milhão.
Num país de lagos, Tampere tem dois, com um desnível de dezoito metros, e quedas de águas entre eles, que alimentaram outrora a indústria e geram energia elétrica na atualidade, e sobretudo atraem, prendem alguém como eu.
A cidade está situada quase toda ela abaixo do lago superior, de onde desce a cascata canalizada, em patamares sucessivos, para o lago mais baixo. Eu passei a maior parte do tempo junto às quedas de água, admirando, preso ao sortilégio, e a interrogar-me sobre a possibilidade, que aparentemente não ocorre aos habitantes, de um dia todo aquele maquinismo admirável deixar de funcionar devidamente.
A cidade tem outros motivos de interesse, alguns belos edifícios, boas livrarias, onde se encontram livros em línguas estrangeiras, e não só em inglês, coisa menos comum na Alemanha. E tem dois belos lagos, que as fascinantes cascatas unem, descendo a cidade.

Os habitantes de Tampere são reservados, como o são em regra os finlandeses, mas muito prestáveis, quando nos dirigimos a eles, como o são os finlandeses, e talvez a gente mais civilizada que alguma vez tenha encontrado. Devo apenas fazer a ressalva de que, deitando-me cedo, não presenciei muitas das bebedeiras de sexta e sábado, dias em que caíram este ano as festividades solsticiais.
Em todo o caso, eu não pertenço a nenhuma liga antialcoólica, e logo no domingo, para compensar a abstinência anterior, bebi cerveja finlandesa, um pouco acima da minha conta. Gastei algum dinheiro porque nisso os finlandeses, como todos os nórdicos, têm preços proibitivos e regras apertadas para o álcool, que parece provocarem sobretudo efeitos indesejáveis. Só os dinamarqueses são mais liberais na venda de álcool, mas praticam na mesma preços excessivos.

Turku

Armando Martins Escritor Sagres - Turku, a torre da catedral
AM – Turku: vista da catedral

Turku foi capital durante o domínio sueco. No início do século XVIII, perdendo a Suécia as veleidades de grande potência do Báltico e abandonada a Finlândia ao império russo, Alexandre I, czar da Rússia, transferiu a capital para Helsínquia, mais próxima de São Petersburgo.
É bela Turku, cidade mais antiga, muito mais antiga que Helsínquia, tendo esta última no início de novecentos, ao que li, uns 4000 habitantes. Corre em Turku um rio, que no centro mais parece ribeiro ou canal, e se espraia depois, já na direção do porto, onde se salienta a mole imensa de um antigo forte.
No centro da cidade destaca-se a catedral, com a universidade perto. Turku tem belos edifícios, e são agradáveis as margens do rio, que convidam ao lazer.

Helsínquia

Armando Martins Escritor Sagres - Helsínquia, o mar, o centro e nele a catedral
AM – Helsínquia: vista do centro com catedral

É bela a capital da Finlândia, bela capital do Báltico, que só terá belas capitais, Estocolmo, Copenhaga, Riga, Talin, e essa outra pérola que é São Peterburgo.
No centro da principal praça da cidade encontra-se a estátua de Alexandre II, czar da Rússia, senhor da Finlândia, rei da Polónia. A Rua de Alexandre, no entanto (Aleksanterinkatu), na capital, toma o nome do seu antecessor, Alexandre I, que instituiu o principado da Finlândia. Por toda o país se encontra uma Alexanterinkatu, e eu presumo que é sobretudo o primeiro do nome que assim é homenageado.
Aos amantes de pormenores deixo a dúvida acerca dos Alexandres russos. Também deixo uma outra, em particular a amantes de filologia, que é a de saber se, como presumo, katu vem realmente do sueco gata, que suponho aparentado com o alemão gasse e mesmo o inglês gate. A mim, ao menos por ora, não me apetece confirmar ou infirmar hipóteses, o que leva tempo.

Armando Martins Escritor Sagres - Helsínquia, Alexandre II, Senhor de Todas as Rússias
AM – Helsínquia: Alexandre II, Senhor de Todas as Rússias

Que país tem na praça mais nobre da capital a estátua de um monarca estrangeiro? Alexandre II era senhor da Finlândia, que tem, como nação, um século de vida independente, não esqueçamos. A Finlândia deve muito a Alexandre II, cuja estátua é testemunho de respeito e gratidão, mas também a Alexandre I, e talvez a sobrevivência do finlandês como língua se deva ao domínio russo, pesem embora os motivos de rancor, animosidade e medo que a história do século XX terá gerado e, durante a segunda guerra mundial, a perda da maior parte da Carélia finlandesa.
Os finlandeses não têm recordações ternas de Estaline. Quem as terá? Bateram-se contra os russos com bravura, e, se o ditador lhes levou a Carélia, não levou o país inteiro, em que de resto não estaria interessado. De qualquer forma, se o houvesse tentado, o seu exército teria arcado com perdas expressivas em vidas humanas.
Helsínquia é muito bela, com o mar por toda a parte, esse Báltico de ilhas e ilhéus, de baías apertadas, um mar fechado, de pulcritude inquestionável, mas que chega a oprimir quem, como eu, nasceu frente ao Atlântico. No labirinto que o Báltico é, interroga-se o visitante como terá sido possível aos façanhudos guerreiros nórdicos de antanho navegar em condições tão adversas.

A jeito de conclusão

Um dia talvez eu escreva um pouco mais e retome este texto num outro contexto e enquadramento. Escrevi de corrida, porque me falece tempo e talvez paciência. Uma coisa é certa, e não é necessário dizer-me ninguém: «Suomi on kaunis maa.» A Finlândia é bela, ninguém duvide.
Deixando uma nota sobre a língua do país, acrescento o seguinte: o finlandês, para quem o não saiba, faz parte das poucas línguas da Europa que, como o basco ou o húngaro, não pertencem à família indoeuropeia. A dominação sueca fez retroceder o seu uso, sobretudo a nível oficial e nos meios cultos, que foi possível recuperar durante o período russo. Muito se poderia dizer sobre a língua e até acerca das diferenças entre a norma escrita e a linguagem quotidiana, mas não é este o ensejo de o fazer.
O finlandês é, pois, uma língua exclusivista, que tem no estónio e no carélio primos mais minoritários, mas as gerações jovens do país falam muitíssimo bem o inglês, e o turista, a esse respeito, não encontra dificuldade alguma.
São brancas as noites, aqui como em São Petersburgo, acima do paralelo 60 de latitude norte. Em Tampere, pelo solstício de verão, o sol está menos de cinco horas abaixo do horizonte, e o céu não chega a escurecer de verdade. Não se dorme é muito bem. Eu deveria ter feito como toda a gente e bebido mais do que bebi.
O reverso das noites brancas são os dias curtos no inverno, curtos e frios, mas era de noites brancas que falávamos, e fica o leitor a saber, se acaso o não sabia, que vale a pena visitar a Finlândia, belo país, seguro, civilizado, de gente prestável.

Brema, 4 jul. 16